Em 2023, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 132, que promoveu a substituição dos tributos anteriormente incidentes sobre as operações realizadas no âmbito das cadeias de consumo. Dessa reforma, surgiram o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), conhecidos como o modelo de Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) Dual brasileiro. Esses tributos, considerados “gêmeos”, incidem sobre a mesma base econômica, abrangendo a totalidade das operações jurídicas envolvendo bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, bem como a prestação de serviços.
A EC 132/2023 alterou substancialmente o panorama tributário brasileiro ao instituir o IBS e a CBS, exigindo-se uma nova reflexão acerca da extensão e dos contornos jurídicos do que se compreende por “serviço”. Tendo em vista as históricas controvérsias jurídicas acerca da definição do conceito de “serviços”, em especial pela repercussão prática na delimitação da competência tributária entre Estados e Municípios.
Para compreender esse novo cenário, retomaremos a evolução do conceito de serviço nos principais tributos que os antecederam o IBS — ICMS, ISS Portanto, para fins de incidência do ICMS, pode-se afirmar que se define como prestação de serviço, unicamente, as atividades que, praticadas com habitualidade, caracterizam-se como obrigação de fazer e que possam ser claramente delimitadas, cuja finalidade é prestar serviço, tipificado na Constituição Federal ou, quando ausente no rol taxativo anexo à Lei Complementar 116/2003, esteja vinculado com a circulação de mercadorias, para um terceiro, com conteúdo econômico, ausência de subordinação e sob regime de direito privado.
Conceito de serviço no ISSQN
No contexto do regime tributário atual, o ISS é o principal tributo incidente sobre a prestação de serviços qualquer natureza. Conforme definido pelo STF em leading case, o ISS detém anexo à Lei Complementar nº 116/2003, um rol verticalmente taxativo e horizontalmente exemplificativo (Tema 296, STF — RE 784.439/DF). Nesse sentido, a relatora ministra Rosa Weber destacou em seu voto que “embora a lei complementar não tenha plena liberdade de qualificar como serviço tudo aquilo que queira, a jurisprudência admite que ela o faça em relação a certas atividades econômicas que não se enquadram diretamente em outra categoria jurídica tributável”.
Dessa forma, para se definir a constitucionalidade das atividades listadas no rol anexo à Lei Complementar nº 116/2003, o conceito constitucional de serviços passou, ao longo de sua história, por diversas mudanças na delimitação de seu critério material. Essas mudanças flutuavam, principalmente, sobre a extensão semântica da expressão “serviços de qualquer natureza” prevista no artigo 156, III, CF. Isto é, acerca da adoção de um conceito econômico autônomo e próprio do ISS ou se este conceito deveria advir do direito privado civilístico, conforme previsto pelos artigos 109 e 110, CTN.
A evolução do conceito de serviço no STF passou por distintas fases entre 1987 e 2021. Inicialmente, com base na Constituição de 1967 e no Decreto-lei nº 406/68, o STF, através do RE 112.947/SP (1987) e do RE 115.103/SP (1988), adotou o conceito econômico como parâmetro para definição de “serviços de qualquer natureza”, entendendo ser constitucional a incidência do ISSQN sobre locação de bens móveis. À época, afirmou-se que a prestação de serviços não se limitava ao conceito civilístico de obrigação de fazer, mas abrangia outros fatos econômicos possíveis de se enquadrar na definição de circulação de bem imaterial.— para então chegarmos à conformação normativa e doutrinária do conceito atual de serviços, para fins de análise do aspecto material dos novos tributos incidentes sobre o consumo (IBS/CBS).
Conceito de serviço no ICMS
No âmbito do ICMS, o conceito de serviço sempre foi restritivo. De acordo com o artigo 155, II, CF, o imposto incide apenas sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal e sobre serviços de comunicação. Excepcionalmente, prevê-se a incidência quando há fornecimento de mercadorias acompanhado de serviços não compreendidos na competência municipal (artigo 2º, IV, LC 87/1996).
Desse modo, caso exista um contrato objetivamente complexo, prevendo o fornecimento de mercadorias com prestações de serviços não elencados no rol taxativo do anexo da Lei Complementar 116/2003, o valor integral dessas prestações deverá compor a base de cálculo da mercadoria para fins de incidência do ICMS.
O ICMS é um tributo que possui como fato gerador uma “hipótese jurídica de incidência”, isto significa dizer que o tributo se utiliza dos ramos de direito privado para abstrair o significado de prestação de serviço para fins de sua materialização. Dessa forma, diferentemente dos demais tributos indiretos, o ICMS não possui um conceito de serviço autônomo e abrangente, de forma a se tributar qualquer expressão de capacidade contributiva que se assemelhe à disponibilização de um serviço ou à circulação de um ativo intangível fruto do emprego de esforço humano direcionado.
O ICMS adota um conceito vinculado ao direito privado, entendendo serviço como uma “obrigação de fazer”. Como aduz Maria Helena Diniz, a obrigação de fazer corresponde ao ato positivo — material ou imaterial — prestado em benefício de outrem.
Posteriormente, observou-se mudança de entendimento, adotando-se o conceito civilístico de obrigação de fazer, no RE 116.121/SP (2000). Nessa oportunidade, o relator ministro Octavio Gallotti declarou inconstitucional a cobrança de ISSQN sobre locação de guindastes operados pelas próprias locatárias, afirmando que a locação resulta na obrigação de dar, e não de fazer. Esse entendimento resultou na edição da SV 31 (2011): “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza — ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
Contudo, em 2009, o STF iniciou a retomada gradual do conceito econômico ao julgar o RE 592.905/SC sobre o contrato de leasing financeiro. O relator ministro Eros Grau reconheceu que, embora composto de elementos contratuais diversos, como de locação, compra e venda, o núcleo desse contrato é o financiamento, que configura serviço. Afirmando-se que “no arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, sendo irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do lease-back“. Divergindo, o ministro Marco Aurélio sustentou que não havia alteração constitucional a justificar a mudança de entendimento, mas apenas mudança na composição da corte.
Em 2017, no julgamento relativo aos planos de saúde (RE 651.703-PR), o STF consolidou a retomada do conceito econômico, afastando a interpretação civilista do artigo 110 do CTN. Fixou-se que “as operadoras de planos privados de assistência à saúde (plano de saúde e seguro-saúde) realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, previsto no art. 156, III, da CRFB/88”, considerando que sua atividade — disponibilização de rede credenciada, garantia de cobertura e administração de fundo coletivo — revela manifesta capacidade contributiva. A corte afirmou que a expressão “de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II (ICMS)” deve abranger todas as manifestações econômicas de serviços, e não apenas as “obrigações de fazer” advindas do Direito Civil.
Em 2020, no RE 603.136/RJ (Tema 300), o STF, por meio do relator ministro Gilmar Mendes, avançou no sentido de consolidação do conceito econômico de serviço, ao reconhecer a incidência do ISS sobre contratos de franquia, considerados de natureza híbrida, afirmando que “a velha distinção entre as ditas obrigações de dar e de fazer não funciona como critério suficiente para definir o enquadramento do contrato de franquia no conceito de ‘serviço de qualquer natureza'”, ressaltando que se trata de contrato objetivamente complexo envolvendo cessão de marca, assistência técnica, treinamento e publicidade.
Por fim, em 2021, o STF, ao reconhecer a incidência do ISS sobre os softwares de prateleira (padronizados) e por encomenda (personalizados), consolidou o conceito econômico de serviço de qualquer natureza, por meio do Tema 590 (ADIs 1.945-MT e 5.659-MG, e RE 688.223-PR). Na ocasião, ficou novamente reconhecida a tese de que a circulação de bem intangível que expresse capacidade contributiva constitui prestação de serviços para fins de incidência do ISS. Ressaltou-se, ainda, que qualquer tipo de software, mesmo que padronizado ou disponibilizado no modelo software-as-a-service (SaaS), possui, como núcleo do produto, a criação intelectual, oriunda do emprego de esforço humano direcionado à construção do programa de computador. Outro ponto destacado foi o fato de que a comercialização de softwares padronizados ocorre por meio da cessão de licenças de uso, prevendo, nos contratos, suporte técnico contínuo, futuros aperfeiçoamentos, entre outros.
Em relação à doutrina, Aires F. Barreto aduz que serviço é a “prestação de esforços humanos a terceiro (atividade-fim), com conteúdo econômico em caráter negocial, sob regime de direito privado, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial”.
Sendo assim, o conceito jurisprudencial atual é o oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais originadas de um esforço humano direcionado, prestadas com habitualidade, intuito de lucro e sem a configuração dos critérios de vínculo empregatício, podendo estar conjugada, ou não, com a entrega de bens ao tomador.
Conceito de serviço no IBS/CBS
A Constituição, em seus artigos 156-A e 195, V, prevê a incidência do IBS e da CBS sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços. O §8º do artigo 156-A, em caráter residual, conceitua serviço como “qualquer operação que não seja classificada como operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos”.
Segundo a norma constitucional, a delimitação da abrangência e do conteúdo desse dispositivo deve ser estabelecida por meio da Lei Complementar nº 214/2025, que, por sua vez, coaduna-se ao mesmo conceito de serviço previsto na Constituição ?, limitando a sua abrangência conceitual por meio dos seguintes critérios:
– A operação deve ser onerosa (artigo 4º);
– Não ser fornecida por pessoa física com relação empregatícia ou administrativa com o contratante (artigo 6º, I);
– Não estar relacionado à operações societárias (artigo 6º, II ao IV);
– Não poderá incidir sobre os serviços financeiros não listados no Regime Específico de Tributação (artigo 6º, V ao VII);
– Não poderá incidir sobre algumas operações financeiras de sociedades cooperativas (artigo 6º, X e XI);
– Deve se enquadrar no conceito de fornecedor, i. e., prestar o serviço (1) no desenvolvimento de sua atividade econômica, (2) de modo habitual ou (3) de forma profissional (artigo 21, I).
Para Hugo de Brito Machado Segundo, a definição constitucional aparenta ser ilimitada, mas encontra restrições na noção de fornecimento e operação, de modo que não se trata de tributo que alcança indistintamente toda atividade. O serviço, aqui, abrange tanto a sua prestação quanto a sua disponibilização ao consumidor ou usuário.
Cristiane e Charles McNaughton, por sua vez, defendem que o serviço deve ser entendido como toda prestação que não se classifique como bem. Esse caráter residual afasta a necessidade de discutir a natureza jurídica do objeto da operação, pois qualquer negócio jurídico que revele um ciclo de consumo e envolva transmissão onerosa de bens ou serviços (ou, excepcionalmente, não onerosas previstas em lei) enseja a incidência do tributo.
Conclusão
O conceito de serviço no direito tributário brasileiro passou por diferentes formulações até alcançar o modelo atual delineado pelo IBS e pela CBS. Se, de um lado, no âmbito do ICMS prevaleceu a concepção civilista de obrigação de fazer, e no ISS se consolidou a noção de prestação de utilidade mediante esforço humano, a reforma tributária de 2023 promoveu uma virada paradigmática ao adotar um conceito funcional, amplo e residual.
Para fins de incidência do IVA Dual brasileiro, serviço corresponde a toda operação de natureza econômica que não se enquadre como bem — material ou imaterial — ou direito, nos termos da LC 214/2025. Assim, o IBS e a CBS conformam tributos de base econômica abrangente, aptos a alcançar a integralidade das operações inseridas em ciclos de consumo e caracterizadas pela agregação de valor.
Trata-se, portanto, de um modelo dotado de elevada dinamicidade e flexibilidade interpretativa, uma vez que sua incidência dependerá da identificação de operações onerosas economicamente relevantes, cuja configuração poderá se transformar substancialmente ao longo do tempo. A própria evolução da economia, marcada por inovações e pela emergência de novas formas contratuais e de circulação de riquezas, tende a ampliar o espectro de incidência do IBS e da CBS, reforçando sua vocação como instrumentos eficazes de tributação do consumo no Brasil.
Fonte: Conjur
Desenvolvido por Sitecontabil 2020 | Todos os direitos reservados